Crônica: A sombra do cajueiro

O calor de Teresina deixa qualquer alma viva sufocada e passando mal. Se você é um turista do Sul, sinto dizer, mas você vai derreter como picolé nesse sol quente. Não há picolé, sorvete ou suquinho que aguente dois minutos sem virar água no chão. A expectativa de aparecer uma brisa, aquele vento de misericórdia, não existe. Existia quando eu estava de férias em São Luís. Aquela ilha é abençoada pelos sopros divinos. O primeiro item da minha lista de planos, após me formar na faculdade de letras, é me mudar para lá. O clima é mais agradável, as pessoas são mais acolhedoras e os professores ganham mais. Por enquanto, eu estou na beira do inferno com 31ºC, às onze e meia da noite. Deixei as janelas abertas porque a esperança é a última que morre. Talvez, o Maranhão sinta pena de mim e me mande uma ventania de presente de aniversário. Na próxima semana, eu completarei vinte e dois anos. O tempo voa com essa pandemia.

Como se não bastasse o fogo dessa quentura, eu ainda sou obrigado a ficar trancado em casa. As aulas estão suspensas, os comércios estão fechados, os parques estão interditados e não há um estabelecimento com ar condicionado ligado. Os protocolos de segurança pedem ambientes abertos e com pouca circulação de pessoas. Eu posso estar sozinho no meio do nada. Se esse nada for aqui em Teresina, eu vou correr até a primeira fonte para dar um mergulho e beber metade da água. O ventilador está na potência máxima, mas não é suficiente. A dor de cabeça me impede de continuar escrevendo o artigo sobre análise do discurso. Quero muito enviá-lo na chamada de capítulos de livro para publicação. Guardei os últimos cento e cinquenta reais da minha bolsa de monitoria só para pagar a taxa de submissão. Não há remédio nessa casa a não ser chá. Uma xícara de chá nesse calor. É aquele ditado: “Se não tem cão, caça com gato.”

Acendi a boca do meio do fogão e coloquei um papeiro com água filtrada. As folhas de cidreira ficam guardadas no pote vazio de café instantâneo. Em poucos minutos, a água começou a ferver e eu coloquei uma mãozada de folhas. Vai ter chá para umas três xícaras. É preciso ter muita coragem para beber ou comer alguma coisa quente aqui. Eu esvaziei o pote de sorvete na semana passada. Hoje, ele está guardando o feijão de ontem no congelador. Mamãe comprou uns pacotes de suco em pó, mas eu não quero fazer isso agora. Mal enchi as jarras d’água e as formas de gelo estão sem nenhum cubo. De manhã, eu usei todos e me esqueci de encher de volta. Acho que eu só não me esqueço de respirar porque faço isso sem me tocar. Não tem agenda ou despertador para me trazer de volta ao mundo.

O chá ficou pronto e eu logo me servi da primeira xícara. Coloquei o papeiro na janela do meu quarto, ao meu lado. A lua parece muito tímida essa noite. Eu contei apenas cinco estrelas no céu. O que será que deve ter acontecido? Elas foram buscar um lugar mais refrescante para serem admiradas ou teve alguma briga? Acho que elas estão respeitando as medidas de segurança contra o COVID-19. O isolamento chegou às estrelas. Eu me servi de mais uma xícara e parei para olhar o cajueiro do quintal. Em momento algum, suas folhas balançaram por causa de um vento. Me lembro de quando eu lia meus gibis embaixo da sua sombra. Ainda não perdoei a mamãe por ter cancelado a assinatura deles. Tenho alguns guardados na minha primeira gaveta. Depois desse artigo, eu vou criar coragem para reler um. Só não vou gostar da ideia de chorar por causa de certas lembranças daquela época.

Deixei a última xícara de chá em cima da mesa e fui lavar o papeiro. Agora, estou com calor e sentindo a barriga ficar mais quente. Devo ter nascido para ser conviver com as chamas. Até tatuei o mapa do Piauí no meu braço direito. O amor que tenho pelas minhas raízes é maior do que as birras por causa da temperatura local. Foi aqui que eu nasci, cresci, me construí e vou me formar. Eu aprendi as primeiras palavras, os primeiros passos, os estudos e as historinhas sobre meus antepassados indígenas. A sombra do cajueiro também abrigou meu primeiro beijo. Sinto como se fosse há poucas horas, de joelhos no chão, quando o Josué se abaixou e me deu esse presente. Eu não esperava recebê-lo, mas eu o aceitei. Que saudade dele...

— Feche os olhos... Eu trouxe uma surpresa do Maranhão. – Foi o que ele disse, antes de me beijar.

Por causa da pandemia, ele se isolou com a família em Timon. O corona vírus pegou a casa inteira, incluindo a avó dele. Foram semanas de muito sofrimento até que eles se recuperaram, menos o Josué... Ele passou dias entubado na UTI, aqui mesmo em Teresina. Há dois meses, Josué se foi sem me dar um beijo de despedida. Ele tinha me prometido que nunca faria isso, depois de quase quatro anos de idas e vindas nesse relacionamento enrolado e cheio de problemas. Não sei se consigo perdoá-lo por mais esse deslize. Se passo um dia sem pensar nele, é porque dormi por vinte e quatro horas e acordei sem me lembrar dos meus sonhos. O amor continua aqui como os cajus que sempre caem, dando lugar a outros na próxima época de frutos. As folhas começaram a balançar. Os ventos finalmente chegaram a Teresina.

 Josué... Eu sei que é você. – Respirei fundo e deixei uma lágrima cair.

Passei mais alguns minutos me lembrando do curto frescor que invadiu meu quintal. Tranquei as janelas e fechei os livros. O artigo pode esperar mais um dia. Não sei quanto tempo mais esse ventilador vai aguentar tentar me aliviar. Eu durmo só de cueca desde quando eu era criança. Se não fossem as muriçocas, eu dormia sem lençol e sem mosquiteiro. Desliguei a luz do quarto e me enfiei na cama. Tenho o costume de passar um bom tempo olhando para o teto. As gotas de suor escorrem pela minha testa. O primeiro bocejo é o sinal de que, dessa vez, o sono veio me dar um beijo de boa noite. Deve ser mais um bom motivo para continuar aqui, sentindo o conforto da sombra à espera de mais uma visita surpresa dos ventos.

(Jojo Campos)

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