Conto: Eu também te amo, Daniel

   

     Depois de tantos anos, essa é a primeira noite que passo longe dele. Uma cadeira vazia na mesa, um prato a menos na louça suja, um lugar forrado e arrumado na cama. Eu deslizei a mão sobre os lençóis brancos enquanto admirava o travesseiro, onde ele se encostava para descansar depois de um longo dia de trabalho. Ainda sinto o cheiro dele em todos os cantos da casa. O quarto é o lugar mais difícil de entrar... Foi aqui que construímos nossas histórias, nossas conversas, nossos prazeres... O guarda roupa é dividido em três partes: uma porta dele, uma porta minha e outra para toalhas e lençóis. Seu lado continua em perfeita ordem, com camisas amarrotadas e misturadas com as roupas sociais. A jaqueta que ele mais usava é de couro preto e com alguns rebites enferrujados. Me lembro de quando entrei na loja para comprar um presente de aniversário de dois anos de namoro. Não gastei muito tempo procurando alguma coisa. A jaqueta estava bem na minha frente e eu decidi levá-la comigo. Ele ficava tão lindo como uma estrela do Rock, de ombros largos e topete. Quando ele usava óculos escuros eu brincava de tirar inúmeras fotos com o celular. Ficavam tão boas que nem precisavam de filtros de edição.

   — Daniel... — Eu estava olhando essas fotos enquanto as lágrimas escorriam sobre o travesseiro — Por quê?..

    Eu tirei a jaqueta do cabide e a levei comigo até a cama. A estante tinha os três livros que ele havia prometido ler, ainda esse ano. Faltava tempo para quase tudo... O hospital sempre precisava dele, até nos fins de semana. A pandemia o trancava nos plantões o dia inteiro. Ele mal dormia direito em casa. Eu tive que voltar a morar com a minha mãe porque sou grupo de risco. A diabetes me acompanha desde a infância... Quase me esqueci de tomar insulina hoje. A presença dele aqui, me dizendo que sempre ficaríamos juntos, não importa o que aconteça... Foi tudo tão de repente. Sinto falta das receitas diets que ele preparava para mim. Sobrou um biscoito sem glúten no armário, mas não tenho coragem de comê-lo. É o último que ele fez... E o guardou como se fosse sua vida porque eu não posso ficar de estômago vazio... Como eu vou me acostumar com isso? Não vou mais esperar suas mensagens? Ele me escrevia todos os dias! Não importava o horário ou o local!

    Eu te amo, Vitor. — Essa foi a última mensagem dele há vinte e três dias, antes de ser internado por causa do COVID-19.

    Eu me sentei no lado direito da cama. Ainda estava quente, como se ele estivesse se levantando daqui. Abracei a jaqueta antes de sentir o perfume dele. Como eu amo esse perfume... Estiquei um braço, vesti. Estiquei o outro, vesti. Senti seu abraço apertado. Confortável como seu corpo, como seu carinho. O abraço que curava as tristezas nesses últimos anos. Me deitei, bem devagar, até a cabeça fundar no travesseiro. Seu ombro estava bem ali, onde me encostei. Apaguei o abajur e as lágrimas voltaram a cair. Ele prometeu que me amaria para sempre... Agora ele se foi. Não consigo segurar o celular direito. Minhas mãos não param de tremer. Eu preciso respondê-lo...

    Eu também te amo, Daniel... — Isso não é um adeus.

(Jojo Campos)

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