Conto: Quando as estrelas se foram

       Desde o começo da pandemia, eu perdi o controle sobre os horários de fazer tudo. Não que eu esteja sentindo falta de acordar às 5h30 da manhã para ir à aula ou de ir para a cama às 23h30 da noite. Eu quase nem tinha tempo para dormir em casa. Às vezes, na curta pausa para o almoço e no intervalo entre uma aula e outra, eu tirava um cochilo no chão. A mochila cheia de livros, comida e água parecia o travesseiro mais confortável do mundo. Minhas olheiras estavam tão grandes que já me perguntaram se alguém tinha me dado um soco em cada olho. Eu consegui passar um mês e meio seguindo essa rotina. As coisas continuariam desse jeito até o fim de junho, mas uma notificação de mensagem no meu celular mudou tudo. Eu estava na barbearia quando a universidade mandou um aviso de que as aulas estariam suspensas por tempo indeterminado. Eu tinha matado a aula da manhã porque passei mal quando tentei levantar da cama. Aproveitei o horário vago no turno da tarde para tirar toda a barba. Eu adorava minha barba, só não tinha mais tempo para cuidar dela e nem dos meus cabelos que já estavam começando a cair. Enquanto a lâmina raspava os fios até eles se agruparem no chão do salão, eu pensava seriamente em como matar a aula da noite, pois eu queria ficar em casa, pensando nos planos de 2020, como se eles não fossem dar tão errados quanto os de 2019. No máximo, eu pretendia cumprir metade da lista e chorar por me sentir um fracassado.

      — Pessoal, as aulas foram suspensas. Não tem quase ninguém aqui no campus. — A professora de antropologia política mandou mensagem.

      — Como assim não tem quase ninguém? Não vai ter aula mesmo hoje? — Um veterano do curso perguntou no grupo.

      — Não. Nós estamos encerrando a reunião do departamento. — Explicou — Nossas atividades estão suspensas por tempo indeterminado devido à COVID-19. Por favor, fiquem em casa. Em breve, a universidade vai emitir uma nota com as devidas orientações.

      A ficha não caiu no começo. Eu não senti a diferença quando abri meu pacote com o restante de máscaras descartáveis do curso de enfermagem. Também não senti quando passei o álcool em gel frio e grudento nas mãos. A ficha não caiu quando minha mãe perdeu a esperança de começar o novo emprego como vendedora de pratarias e semi joias, nem quando meu pai chorou desesperado pela liberdade que, tão de repente, ficou restrita. O supermercado lotado, os carrinhos de compra cheios, as pessoas às pressas nas filas dos caixas e os estacionamentos quase sem nenhuma vaga. Quais eram as medidas de segurança mesmo? O clima de pânico tomou conta das ruas, do bairro, da cidade... Não testemunhei o resto porque não pude ir tão longe assim. Eu só acompanhava os dados de infectados e as primeiras mortes pelo portal da Secretaria de Saúde. Não demorou nem um mês para o coronavírus fazer uma visita às pessoas conhecidas. Quando isso aconteceu, eu já estava de olhos bem abertos. Não que em algum momento eu tenha negado a pandemia ou ignorado as medidas. Meu juízo sempre esteve em pé. Eu só não sentia a diferença... Porque tudo parecia o mesmo de sempre para mim.

      — Olha só que horas já são! Parece até que tu tá doente! Isso faz mal! — O melhor despertador sempre abria a porta e a luz da cozinha batia bem na minha cara.

      Eu comecei a dormir de manhã, a acordar de noite, a tomar café às 19h, a almoçar às 23h45 e a jantar em qualquer horário da madrugada enquanto assistia qualquer série na Netflix. Isso não fez diferença para mim. Eu ouvia críticas, brigas e reclamações sobre isso, mas eram as mesmas dos anos anteriores, mesmo quando eu tinha horário para tudo. O calendário acadêmico foi suspenso e as provas presenciais dos cursos EAD também. Eu passava o dia inteiro me sentindo improdutivo e parado no tempo, como se minha vida não fosse útil para nada. Isso também não fez diferença para mim. Eu me sinto assim desde o ensino fundamental. O boletim podia ter 10,0 em matemática e um "Parabéns" da coordenadora. Essas coisas não eram suficientes para dar algum sentido no que eu fazia. As academias fecharam e os espaços de lazer ficaram interditados. O sedentarismo me fazia sentir preguiça, cansaço e sono, mesmo sem sair do quarto para quase nada. Antes da pandemia, eu não praticava esporte e nem durava mais de dois meses na academia. Eu já tinha sobrepeso e vivia comendo podrão na rua. Só não dou mais aquelas pernadas de um prédio para outro, nem corro mais atrás de ônibus. O podrão de rua virou podrão de casa e o peso continuou aumentando... O que mudou de verdade?

      Quando eu descia do ônibus, tarde da noite, e andava pelas ruas do bairro até em casa, o céu escuro me dava um mapa em branco para eu traçar o caminho que eu quisesse seguir. Era só seguir as estrelas, como se fossem pontos ligados pelos meus traços feitos à lápis sobre o papel. Elas me acompanhavam até a porta, em segurança, para eu tirar a chave do bolso e procurar a correta para abrir o portão e entrar. Se a noite estivesse muito quente, eu abria as janelas para passar uns vinte minutos respondendo às mensagens no WhatsApp e organizando a agenda do dia seguinte. Como a garagem é coberta pelo telhado, eu tenho uma pequena brecha para admirar a beleza do céu. As estrelas ficavam ali, me ajudando a contar os carneirinhos enquanto o sono me enrolava. O tempo para dormir era tão curto que não valia muito a pena. Eu passava a madrugada olhando para o teto, tentando imaginar como essas estrelas estariam organizadas em cima do teto. Uma vez, eu consegui enxergar através dele só para dar um beijo de boa noite em cada uma delas. Eu beijei a última e o despertador tocou às 5h30 da manhã... E agora? Onde estão as estrelas?

      Eu já abri a janela várias vezes em uma mesma noite. Eu olho para o céu e procuro por elas. Eu as chamo uma por uma, e não aparece ninguém. Há anos, minha vida social se tornou tão pequena que eu mal me importava em me lembrar do aniversário de alguém. Minha vida amorosa, que nunca existiu de fato, deixou de estar presente nos meus planos de cada ano. Tudo bem, isso não me fazia falta. O tempo era contado até para dar um bom dia, exceto para as estrelas. Eu tinha todo o tempo do mundo para elas. Se uma estrela me pedisse um copo d'água, eu arriscava fazer todo barulho com a geladeira e o armário de copos da cozinha, sem me preocupar com qualquer um que pudesse acordar de um sono leve, e subir os degraus das nuvens até entregá-lo na sua mão e esperá-la terminar de beber para perguntar se queria mais. Hoje, eu só falto escrever cartas e dobrá-las como aviõezinhos de papel para ver se alguma delas me responde. Foi assim que eu abri os meus olhos para o que estava acontecendo no mundo. Não importa quantas janelas ficam abertas até o sol nascer, as estrelas estão fora do meu alcance. Não as vejo pelo quarto, pela garagem, pelo jardim e nem pelo quintal. Eu não acredito que elas se foram...

      — Eu pensei que a gente fosse amigo...

(Jojo Campos)

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