Crônica: Campus 311

       Estudar em universidade pública não é tão desafiador quando a maioria das pessoas que conheço estudam na maior universidade privada com as mensalidades financiadas. Nossos trajetos são os mesmos, com exceção de uma integração a mais para mim. Nossas refeições são as mesmas, mas eles pagam o triplo do preço. Nossos sonhos são iguais, como se dormíssemos juntos em uma caixinha de lembranças. O diploma, o emprego e o teto continuam ali, no mesmo lugar. Não temos quase nenhuma participação em projetos científicos e nem bolsa para atividades de extensão. No meu caso, a universidade sofreu cortes absurdos. Enquanto eles, coitados, precisam gastar para participar de algo. É perda de tempo tentar apontar "o mais esforçado", "o melhor", "o de sucesso" só por causa disso. Eu fui fazer minha matrícula sem nenhum sorriso no rosto. Não me sinto melhor do que nenhum deles. Na verdade, me sinto tão igual. Passei pelos dois lugares e não senti tanta diferença. Você volta para casa cansado, estressado, com trabalhos acumulados e provas que arrancam as noites de sono. Se estudar o que você gosta diminuísse o desgaste, eu seria o único andando de olhos fechados pelos corredores.

      — Oi, Jojo! — Dayse, minha colega de turma, passou pela parada do prédio de humanas — Você vai pegar o 311 aqui dentro ou vai pegar o ônibus lá fora?

      — Eu vou pegar o 311 mesmo! — Respondi.

      O ônibus vem um pouco lotado porque é o último do dia. Ele passa às 22h10 em ponto. Depois dele, só do lado de fora da universidade para conseguir um ônibus para casa. O trajeto é tão longo, mas eu me acostumei. Eu sempre me sento na janela para sentir o vento no rosto. Se não fosse o medo de ser assaltado, eu fecharia meus olhos e esperaria o sono chegar. Pena que as ruas estejam cheias de buracos. O ônibus sacode, balança, sobe e desce, para lá e para cá. Perdi a conta de quantas vezes bati a cabeça na vidraça por causa dessas coreografias. Eu não posso dormir... Não posso correr o risco de perder o ponto. Imagina o que seria de mim se eu perdesse a integração ou se eu descesse no ponto errado. Nem sempre tem outro ônibus para o caminho certo. Nem sempre minha carteira de meia passagem tem crédito suficiente para uma viagem de fora da programação. Nem sempre tenho dinheiro para pagar uma passagem inteira de emergência. Ainda bem que a viagem no 311 é rápida até a primeira integração. Não dura nem quinze minutos (quando não há congestionamento no trânsito).

      — Todos os homens do ônibus, por favor, desçam! — Disse o policial.

      Eu já me acostumei com isso. Eles pedem para a gente descer, revistam nossas bolsas, passam as mãos nos nossos bolsos e nos liberam. Não tem nenhuma policial mulher junto com os demais. Então, elas não são revistadas. Essas abordagens atrasam cinco minutos na viagem, mas nunca me fizeram chegar mais tarde em casa.

      — Coloca as mãos para cima! — O policial encostou minhas mãos na cabeça e começou a me revistar.

      Ele passou as mãos pela camisa, pela cintura, pelos bolsos, pelas mangas, pelas costas, pelas virilhas... Senti seus dedos indo além dos limites de uma "checagem" de segurança. Os outros rapazes foram liberados antes de mim. Eles estavam em seus assentos, debochando da minha cara. Alguns até riram pela janela. O policial abriu minha bolsa e meteu a lanterna para vasculhas meus cadernos, meus livros, abriu os potes de comida vazios e até minha garrafa d'água. Quando fui liberado, o lugar em que eu estava sentado foi ocupado por outro rapaz. Tudo bem, tem outra cadeira na janela, perto da cobradora do ônibus. Ainda bem que não tem mais ninguém aqui perto.

      — Jojo! — Bruno passou pela catraca e veio se sentar ao meu lado — Voltando da aula?

      — Bruno! — Respondi com a cara de sono — Sim. Tive prova hoje... E você?

      — Eu tive TCC hoje. Ainda bem que já tá acabando.

      — Passa tão rápido... Daqui a pouco, eu vou defender o meu.

      Quando alguém se senta do seu lado e começa a puxar assunto, o motorista parece acelerar. O ônibus anda tão rápido que só falta sair do asfalto e voar. Em cada parada, um ambulante diferente entra para vender seus produtos. Eu sempre deixo algumas moedas reservadas para isso. Eles trazem o meu jantar quando não tenho tempo de ir ao restaurante. Hoje, o jantar é amendoim e pipoca doce. Bruno não gosta de comer essas coisas. Nem insistindo ele aceita. Eu me sinto mal quando como sozinho e alguém do meu lado fica sem nada para mastigar. Pior que eu tô tão cansado que sinto dificuldade para abrir a embalagem. Não seja por isso. 

      — Você pode abrir para mim? — Eu pedi ao Bruno.

      — Todos os homens do ônibus, por favor, desçam! — Disse mais um policial.

      — Vamos lá. — Bruno foi logo descendo.

      Mais uma revista e os procedimentos são os mesmos. Dessa vez, o policial não quis abrir todos os zíperes da minha mochila e nem vasculhar meu corpo com tantos detalhes como o anterior. Porém, ele me fez derrubar o meu jantar no chão quando segurou minhas mãos na cabeça. Por que ele não quis me esperar guardar os amendoins? Eu não tenho mais dinheiro para comprar nada. Vou ter que esperar uma hora e meia, até chegar em casa, para comer. Se eu não tivesse hipoglicemia, não me preocuparia tanto com isso. Pelo menos, eu subi um pouco mais rápido e não perdi meu assento. Ainda estamos na metade do caminho.

      — Eles te revistaram? — Bruno me perguntou — Por que você demorou tanto?

      — Ele abriu minha mochila e revistou meus bolsos e minha camisa.

      — Nossa. Eu nem fui revistado.

      — É assim mesmo...

      — Ah, deve ser horrível...

      Ele entendeu muito bem a situação. O motivo de o Bruno não ter sido revistado é que ele era o único branco entre todos os rapazes nesse ônibus. Quem desconfiaria de um homem branco de camisa gola polo e sapatênis? Imagina se encontrassem o dichavador rosa e o produto guardado na mochila dele. Se isso enchesse barriga, eu compraria fiado da mão dele para comer. Tô pensando como se fosse salada. Eu odeio salada, mas a fome faz até o chiclete grudado na parede parecer saboroso. Eu encostei a cabeça na janela para tentar relaxar e controlar a respiração. Não posso desmaiar de fome aqui... Não vou demorar tanto para chegar à última integração. Só falta mais um ônibus sentido bairro para eu chegar em casa.

      — Todos os homens do ônibus, por favor, desçam! — Disse o policial.

      — Jojo... Você tá se sentindo bem?.. — Acho que era o Bruno falando comigo...

(Jojo Campos)

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