Crônica: Uma delicada memória
Os anos em que passei na
metrópole barulhenta me fizeram sentir saudades do interior. Não sei de onde
surgiu a coragem de trocar as tardes ensolaradas, as noites tranquilas, as
músicas alegres e a melhor comida do mundo, por tantos ventos enfumaçados.
Ainda me lembro de quando eu tinha quinze anos e fui surpreendido com a
primeira chuva de granito. Mamãe me abraçou e me disse para ficar calmo, pois
isso era comum. Aquilo foi uma cerimônia de execução para um menino acostumado
com as leves chuvas que hidratavam os limoeiros do quintal.
Quando coloquei os pés,
pela primeira vez, em São Paulo, me senti imundo, suado e com medo. O desejo
foi pegar um ônibus, do outro lado da rodoviária e voltar para Queimada Nova,
mas eu já estava acorrentado aos céus cinzentos e sem estrelas. Os anos de paz
no Nordeste eram apenas memórias que me faziam chorar após apagar a luz para
dormir. Saudade do sertão, das minhas tias e primas, do cuscuz, do leite fresco
e do doce de rapadura. Nossa vida mudou em todos os sentidos.
Mamãe era professora e
foi trabalhar como empregada doméstica em duas casas. Papai trabalhava na roça
e tinha uma feira. No fim ele recebeu um treinamento de alguns meses e virou
operário de construção civil. E quanto a mim, eu estudava e ajudava a vender os
bolos e as cocadas que minha mãe fazia. Saí de Queimada Nova, continuei os
estudos, terminei o ensino médio e o curso técnico em enfermagem. Então, eu
passei no vestibular da Santa Casa e voltei a conciliar os estudos com o
trabalho. Durante todo esse tempo, eu aguentei ouvir as pessoas tirando onda
com a minha cara, por causa das minhas origens, do meu sotaque piauiense e do
meu jeito afeminado. No início, eu chorava no colo da professora. Depois,
passei a ignorar essa gente besta.
— Mamãe! Papai! — Eu me
ouvi gritando por eles, do lado de fora do ônibus.
— Meu anjinho, já faz
mais de quinze anos e você ainda se dói por isso? — Mamãe se sentou ao meu lado
e colocou a mão no meu ombro – Você já devia ter se acostumado com as
nossas novas raízes. Não se lembra dos motivos do abandono da nossa
cidadezinha?
— Lembro, mas isso não
importa. –— Voltei a chorar — Não tenho mais nada para fazer aqui. Esse lugar
não me trouxe nada de bom.
— Você deixou até o Manuel
para trás? — Mamãe me pergunto pelo meu namorado — Ele é um rapaz tão bom.
— A gente terminou,
mamãe. A gente não se via desde março. Ele acabou conhecendo outra pessoa.
— Esquece ele então. Não
tem importância. E o seu emprego no hospital?
— Sua mãe só queria o melhor para você. — Papai estava do outro lado, na primeira cadeira — Tenta mais uma vez, como a gente sempre faz.
— Eu tentei, papai...
Tentei várias vezes. Não por mim, mas por nós... Para que ficássemos juntos.
— Se é isso o que você
tanto quer... Voltar para o Piauí. Nós entendemos. Não é, Zé?
— Dê um abraço na sua tia
Bibita por mim e pela sua mãe. — Ele me deu um beijo na testa de despedida.
— Com licença. — Uma
adolescente chamou minha atenção –— Essas poltronas estão reservadas?
— Não... Estão sem
ninguém.
Ela se sentou ao meu lado
enquanto outra menina mais nova se sentou na poltrona do meio. Eu gosto de me
sentar na janela, pois não sou de usar fones de ouvido ou ler livros para me
distrair enquanto viajo. Não me interessa quantas horas ou dias a viagem pode
durar. Sempre tive muito medo de avião, então ainda não criei coragem para
enfrentá-lo. A propósito, nos últimos meses, eu pensei que nunca mais viajaria
de novo, a não ser para onde papai e mamãe estão. Foram noites cansativas,
dando plantões em hospitais. Durante o dia, eu dormia com as janelas abertas,
naquela velha casa sem plantas e sem cachorro. Quando os ventos resolviam entrar, as
cócegas batiam nos meus pés. Como isso me lembrava a brisa do mar de Parnaíba e
os sonhos com os paraísos cercados por águas salgadas. De vez em quando, a
tristeza me fazia companhia porque aquelas correntezas levaram um ente querido,
igual a uma sereia, para as profundezas. Não houve lágrimas para preencher as poucas
marés do Piauí.
Durante meus expedientes,
mal tive tempo para atender a uma ligação da mamãe. Não fui um bom filho, pois
estava na linha de frente contra o COVID-19. Eu me expus ao risco enquanto eles
ficaram de quarentena, em casa. Tive que alugar um kitnet perto do hospital. Eu
não podia colocá-los em perigo e nem deixar de trabalhar. Meus pacientes
precisavam de mim. Pena que meus esforços não adiantaram muito. Por causa de
uma visita teimosa da vizinha fofoqueira, que não aguentava passar mais um dia
sem tomar conta da vida dos outros, meus pais foram contaminados. A falta de
ar, a tosse, a fraqueza, a intubação... Passei os últimos dias, cuidando dos
dois, enquanto me segurava para não cair aos prantos pelos corredores. Então,
foi quando eu precisei me afastar. Não pelo trabalho ou pela dor que senti ao
perdê-los, mas pelas surpresas que a vida me preparou. Eu queria tanto que eles
estivessem aqui...
As areias mais alegres do
que os ventos. Os desenhos se formavam como mágica, contando histórias de vidas
passadas. Eu vivi no caminho da felicidade, onde o único objetivo era seguir em
frente enquanto as águas me beijavam os pés, mostrando os espelhos de cada
conquista. Esses momentos me fazem sentir saudade de minha casa cheia de gente.
Talvez, o futuro tenha reservado os melhores presentes para seu filho. O corpo
parecia pesar e eu não sabia o que me tinha me deixado assim. Quando senti
náuseas e dificuldade para ajudar a carregar os idosos, precisei deixar de ser
enfermeiro, por um dia, para virar paciente do hospital. O sol, que sempre me
acolheu, queria fugir de mim. As estrelas se formavam na minha frente e tudo
estava escurecendo. Meu corpo estava ficando tão fraco, e alguma coisa parecia
me obrigar a ser forte. A força parecia me sugar a alma. É
muito ruim ficar enjoado a cada prato de comida, a cada soneca. Nem sempre as
surpresas são por uma data especial ou por encomenda. Às vezes, eles estão lá,
na nossa porta, dando continuidade ao que foi perdido ou marcando novas histórias.
No meu caso... Bom... Eu não tenho tanto tempo assim. Eu só preciso ficar na minha
verdadeira casa e esperar a hora certa para abraçá-los de novo.
(Jojo Campos)
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