Conto: Cocadas de Maracujá


      Entre os municípios de Pinheiro e Santa Helena, meia hora de carro, se os buracos não atrapalhassem tanto nos períodos de chuva. Metade do caminho tem o asfalto quebrado e enlamaçado. Tem vários quebra molas e quase nenhuma fiscalização. É muito ruim viajar deitado no banco de trás porque, a qualquer momento, posso ser jogado para frente. Dormir sentado também não é uma boa opção. Perdi as contas de quantas vezes bati a cabeça na janela do carro. Sentar, relaxar e conversar parece uma boa? Impossível. Não dá para competir com a playlist de trilhas sonoras internacionais das novelas da Globo. Além disso, eu não gosto muito de conversar com as amigas do meu pai. Nunca falei a língua delas e elas tampouco a minha. O que fazer então? Eu já tive algumas ideias brilhantes para passar o tempo. Qualquer coisa que fizesse o tempo passar sem essa lerdeza era lucro.

      — João! — Me chamaram no banco de trás — Canta aí também!

      Uma vez, quando voltávamos para casa depois do famoso Carnaval de Pinheiro, a chuva resolveu me dar um alô. Ela começou a desenhar na janela do carro. As gotas se formavam em estrelas, em planetas, em uma galáxia gigantesca que se espalhava até chegar ao retrovisor. O vidro ficava tão embaçado que eu podia desenhar para a chuva. Como era difícil agradá-la, os ventos gelados sopravam as janelas até apagarem as minhas histórias. Ela também não gostava das minhas flores e dos meus corações. Então, eu cedi. Parei de desenhar e só fiquei observando o trabalho dela. O que ela quer dizer com tantos pontos de água sendo sugados para a direita? Parecem os jambos e os cajus quando são puxados de seus galhos. Isso é saudade de Pinheiro ou dos povoados que acabamos de passar? Não tem nenhum cajueiro, nem jambeiro pelas paisagens da estrada, só coqueiro babaçu e algumas palmeiras que não conheço. Em Santa Helena também tem tudo isso - inclusive no meu quintal -, mas eu nunca fui muito de pegar nenhuma fruta direto dos galhos. Eles sempre foram muito mais altos do que eu. Nem com pernas de pau eu posso alcançá-los lá em cima.

      — Falando sozinho, João? — Alguém passou a mão nos meus cabelos.

      Teve um dia em que fomos visitar a vovó na casa dela. Passamos pouco mais de uma hora sentados na sala de estar. Os móveis eram todos de madeira maciça, até mesmo os sofás. Eles tinham algumas almofadas bem confortáveis e uma TV meio antiga, mas que ainda funcionava. As paredes precisavam de uma nova pintura e os quadros de retratos de parentes eram tão sérios que pareciam pinturas do início do século passado. Quase nenhuma casa tinha teto forrado nessa cidade. A casa da vovó Lucy não era diferente. Dava para ouvir os barulhos de todos os cômodos. Tinha uma cadeira de balanço que só a vovó e os netos podiam se balançar. Sabe que eu nunca passei mais do que cinco minutos me balançando nela? Quando eu me sentava, vovó me chamava na cozinha. Eram as deliciosas cocadas de vários sabores que ela tinha feito para mim e para o meu pai. Cocada de maracujá, de chocolate, de coco queimado, de quebra queixo e até de goiaba. Eu só me lembro do sabor da tradicional e da de maracujá. Acho que foi em uma dessas visitas que eu me despedi das melhores cocadas da minha vida. Infelizmente, vovó não pôde mais voltar para a cozinha, nem para nenhuma outra atividade que envolvesse fogo, faca, peso ou muito esforço.

      E como foi voltar para casa? Não foi tão diferente de outras idas e vindas de Pinheiro. Só um detalhe especial: eu levei um pouco da vovó comigo. O carro abrigava o mesmo cheiro das almofadas. Eu fiquei sentado, quieto, pensativo e preocupado. Aquelas cocadas me encararam a viagem inteira, como se quisessem me contar alguma coisa. Eu as encarei de volta e senti todas as histórias até elas chegarem até a mim. Eu vi a vovó escolhendo os cocos na feira. Ela acertava escolher os que tinham mais poupa do que água. Eu vi a vovó quebrando os cocos no quintal. Ela quebrava sem muito esforço e conseguia guardar a maior parte da água. Eu vi a vovó ralando os cocos na cozinha. Não havia equipamento moderno, só o tradicional ralador. Como ela fazia isso sem ralar os dedos? Eu devia ter pedido para ela me ensinar... Eu vi a vovó na beira do fogão, mexendo cada panela com todo cuidado. Era uma panela para cada sabor. Aliás, a minha favorita sempre ficava na maior de todas. Sabia que nem deu tempo de chegar em casa? Eu abri a caixa e tirei a primeira. Em seguida, meu pai tirou outra e a gente comeu no meio da estrada. A caixa ficou aberta no meu colo enquanto a gente comia mais umas duas ou três.

      — Quer mais uma? — Perguntei ao meu pai.

      — Não. Pode fechar.

      — Eu quero mais uma.

      Eu só fui entender o que aquele dia significou quando voltei a Pinheiro. Na viagem seguinte, não havia nenhuma cocada esperando por ninguém. A vovó estava tão cansada. Foram décadas de muito trabalho, muita luta, muito esforço... O tempo de descansar finalmente chegou. Me pegou de surpresa porque, se eu soubesse, teria visitado Pinheiro mais vezes. Eu reclamava tanto da viagem porque sentia náuseas no carro. Só trinta minutos de sufoco com o cinto de segurança e os vidros fechados. Dava para suportar. Eu não devia ter ficado em casa quando tive outras chances de visitá-la. Eu não devia ter perdido meu tempo brincando na frente da casa dela. Eu devia ter ficado lá, no sofá, junto com a vovó. Até hoje, eu não consigo fazer cocadas como as dela. Nunca tentei fazer, na verdade. Não tenho como competir. É estupidez tentar comparar. Ninguém conseguiu superá-la. Ninguém sequer chegou aos pés dela.

      — Já vai fazer meleira na cozinha?

      Eu guardei a panela e os ingredientes. Não vou arriscar fazer isso... É que eu sinto falta dela. Sinto falta de tudo. Eu não sei se, algum dia, a gente vai se encontrar... Não sei se vou ficar perto dela... Não sei se vou voltar a ouvi-la. Eu queria que fosse possível, mesmo que fosse só nos sonhos.

      — Vem comer cocada! — Vovó Lucy me chamava na cozinha.

      — Tô indo, vó!

(Jojo Campos)

Comentários

  1. Que lindo! Deu saudade dessa vó... os pequenos e simples momentos podem ser os mais importantes em nossa jornada.

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    1. Olá, querido Bruno. Muito obrigado pela sua leitura.

      Eu sinto saudade da vovó... Ela partiu justo na véspera do Natal. Sinto saudade de todos os pequenos momentos que tivemos. Queria que ela ainda estivesse aqui... Com certeza, ela deixou muito para todo mundo aprender. <3

      Com amor,
      Jojo Campos

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  2. Sinto pela sua perda, mas com certeza, as memórias, ensinamentos e os sorrisos que ficaram nas lembranças, ensinam a todos a ser amor.

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