Sim, eu sou amador e independente

 

      Há quem pense que ser amador e independente significa ter menos responsabilidades nos ombros. Não é bem assim. Ser amador é não carregar a obrigação profissional de escrever para os outros, mas a obrigação de escrever para si pode ser ainda mais exigente. Para muitos autores, a escrita não coloca as panelas no fogo e não paga as contas de casa, mas é o que os mantém vivos e de pé. Se não fosse o papel e a caneta, eu me sentiria preso em um mundo de ideias abstratas e confusas, sem poder colocar para fora ao menos um recorte qualquer e sentir o alívio de um peso que acabou de cair dos meus ombros. Meus dias se resumiriam a ficar deitado na cama, olhando o teto reproduzir tantos acontecimentos pessoais, como se ele fosse a maior TV que eu já assisti, Talvez, o nada me responderia com alguns vultos e aqueceria meu coração com os momentos de amor mais especiais que eu nunca vivi. Se não fosse o papel e a caneta, muitos autores se sentiriam incompletos no completo excesso e vazios na angústia farta. Acredito que a realidade de um escritor profissional não difere tanto assim de um amador. Afinal, todos escrevem. Só que um pode escrever para viver e o outro para se manter vivo. Pode ser ambos também. Isso não é uma senhora responsabilidade?

      Pense em um adolescente de quinze anos que escreve todos os dias em seu querido diário. Um diário ouve, responde, guarda segredos e consola, mas ele também pode ser um dedo duro, um babaca insensível ou um saco de pancadas. Quem passou o ano inteiro escrevendo em suas páginas, conseguiu respirar fundo e aliviado por ter um melhor amigo e saber que pode contar com ele sempre que precisar, tanto para os bons quanto para os maus momentos. Imagine como esses desabafos à caneta pouparam muitas paredes de sentirem o impacto de um soco, como eles pouparam muitos guarda roupas ficarem trêmulos com tantas cabeçadas ou mesmo como eles impediram que muitos braços e pernas ficassem cheios de rabiscos de mutilação. Infelizmente, não são todos eles que conseguem ter acesso à psicoterapia. Alguns deles nem sequer possui outro amigo, além do diário. Por muito tempo, eu fui um deles, ou melhor, eu me senti assim. Eu não escrevi porque queria descontrair um momento de tédio e desânimo. Eu não enchi cadernos e mais cadernos de textos só para passar um tempo com uma coisa qualquer que me deixasse cair na ilusão de que eu fiz alguma coisa "produtiva". Eu escrevi para me manter vivo. Eu devo minha vida à escrita. Eu estou de pé porque sou amador e independente.

      Sabe o que é ser independente? O conceito básico é "cuidar da própria carreira literária e do seu legado nas publicações". Está correto, mas não é só isso. Para um escritor independente escrever, basta um requisito qualquer: querer, poder, sentir, amar, odiar, chorar, surtar, gritar, respirar... O dia pode reservar poucos minutos ou longas horas, mas a caneta e o papel estão ali, cheios de ansiedade enquanto aguardam pelas suas utilidades. Já o escritor profissional, ele tem um requisito muito bem definido: dever. São canetas e mais canetas vazias, papéis e mais papéis amassados no lixo, o tempo passando e os textos saindo porque devem e precisam sair. Caso não saiam, os prejuízos podem custar o almoço do dia e os boletos do mês. Isso não significa que todo autor precisa escolher entre umas essas opções e segui-la pelo resto da vida.

      Há situações em que o perfil profissional predomina, mas não é restrito. Há situações em que o amador toma conta da maioria esmagadora de suas produções, e o profissional tem uma pequena parcela de tempo e textos reservados, como em uma coluna às quintas feiras, das 18h às 22h. Um escritor profissional pode se dedicar aos seus textos mais íntimos e pessoais, sem se preocupar com a norma culta do português e com os prazos para publicação (na verdade, nem precisa publicar). Um escritor amador também pode vender seus textos, receber por isso e juntar uma boa grana. Se eles são independentes ou não, isso já é outra questão. Porém, mesmo se houvesse uma editora tomando de conta de alguma carreira ou mesmo um contrato de exclusividade com as produções literárias, um escritor, profissional ou amador, é livre para criar seus próprios prazos (e não os cumprir), suas próprias metas (e não as cumprir), seus próprios planos (e não os cumprir) e deixar tudo para a última hora (ou para um momento espontâneo, inesperado e cheio de empecilhos). Dizem que a vida de um escritor é muito injusta porque o tempo, a energia, a vontade, a caneta e o papel não preenchem todas as palavras, todas as ideias que se passam na sua cabeça.

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